Ciência e Vida

Saúde baseada em valor: saiba como gerir melhor as complexidades do setor

O modelo de remuneração por serviços prestados começou a ser repensado, a partir da constatação de que os crescentes gastos continuam onerando o sistema mundial de saúde

 “É urgente a necessidade de transformação do modelo de remuneração dos serviços prestados em saúde na atualidade”. A conclusão é da Médica especializada em Administração em Saúde, e docente das disciplinas de Gestão e Liderança do Ensino Einstein, Dra. Dannielle Fernandes Godoi.

Ela ainda lembra uma máxima conhecida do Institute for Healthcare Improvement (IHI): todo sistema é perfeitamente desenhado para atingir os resultados que atinge. Para ela, isso implica dizer que o modelo de remuneração que temos hoje impacta fortemente na forma como o cuidado em saúde é prestado e em seus resultados.

Entre as mais importantes ações está a transformação do modelo de remuneração fee for service (pagamento baseado em procedimentos e serviços) para o formato fee for value (honorários recebidos com base nos resultados do cuidado em saúde, na melhor experiência para o paciente e nos custos adequados de todo esse processo). Essa discussão surgiu há mais de 20 anos, a partir da constatação de que os crescentes gastos estavam onerando o sistema de saúde em nível mundial.

Segundo a Dra. Dannielle, atualmente muitos países já estão implantando ou expandindo o pagamento baseado em valor, mas no Brasil essa ação ainda é incipiente. “Para mim, é uma missão buscar alternativas para implementar medidas que levem ao real desenvolvimento sustentável do sistema de saúde no Brasil, tanto no setor público quanto no privado”.

Conforme o Coordenador da Graduação em Administração do Ensino Einstein, João Paulo Bittencourt, a prática do fee for service representa mais um item somado à lista dos atuais desafios do gerenciamento do setor, tornando o sistema ainda mais complexo.

Marcado pela falta de geração e disponibilização de dados, comunicação efetiva e desenvolvimento de novas competências, esse modelo precisa dar lugar ao fee for value para que, de maneira conjunta, seja possível colocar o paciente no centro da assistência, com mais qualidade e eficiência na geração de benefícios para todos os envolvidos.

Custos do setor de saúde

O envelhecimento populacional, fenômeno que tem ocorrido em escala global; o progressivo aumento na carga de doenças crônicas decorrentes do estilo de vida contemporâneo; o uso das novas tecnologias; o desperdício; entre outros fatores, têm contribuído para o aumento de gastos e os elevados custos do setor da saúde. Inovar nos formatos de remuneração da prestação dos serviços em saúde de todo o mundo é um dos caminhos mais adotados no momento.

No modelo fee for service, quanto mais enfermidades, complicações e readmissões hospitalares, maior o número de procedimentos, exames e recursos físicos, humanos e financeiros utilizados. Essa sequência impulsiona o setor a inflar o caixa dos prestadores de serviços.

Por isso, é necessário um referencial para guiar ações e desempenhos baseados em valor (value-based). Essa proposta envolve a relação entre os desfechos clínicos e o investimento financeiro para atingir os melhores resultados ao paciente. Ou seja, o efeito esperado em tempo oportuno às necessidades das pessoas e dentro de uma base planejada de gastos.

Conforme a Dra. Dannielle, trata-se de um sistema que premia a geração de saúde, a prevenção de doenças e o bem-estar das pessoas, conciliando qualidade e custo, além de valorizar o bom profissional de saúde, reduzindo despesas e eliminando desperdícios.

Mas, a agenda da reformulação para entrega de valor envolve desafios, metodologias, engajamento dos profissionais e gestores, princípios éticos e planejamento estratégico. “As ações devem ser centradas nos pacientes ao longo de todo o ciclo de atendimento, ou seja, na jornada do paciente dentro do sistema de saúde, não apenas em cada procedimento”, explica a Médica.

No Einstein

A jornada de valor do Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE) iniciou-se nos anos de 1990, quando foram obtidas as primeiras certificações de qualidade. Ao longo do tempo, a Instituição foi aprimorando os processos que envolvem a gestão em saúde com esses conceitos e hoje em suas instalações existe a área de Economia da Saúde.

Esse setor administra a criação e manutenção de projetos e novos produtos baseados em valor, priorizando a previsibilidade de custos, controle de desfechos e a análise da variabilidade da prática clínica, direcionados à melhor experiência e qualidade de vida para o paciente.

Bundle

A Superintendente de Economia da Saúde do HIAE, Vanessa Teich, explica que uma das ferramentas adotadas para a eficácia do resultado e alinhamento desses itens é chamada bundle. É um conceito focado no episódio de cuidado coberto (acompanhamento de toda a jornada do paciente, compreendendo os períodos antes e depois de uma cirurgia, além do pós-alta). “No momento estamos trabalhando nesse nível, como por exemplo nos projetos envolvendo mulheres com endometriose e indicações para cirurgia na coluna vertebral”, diz ela.

Na segunda patologia, além do episódio coberto, há também a segunda opinião de especialistas para avaliar casos com recomendação cirúrgica. Dessa forma, tanto para eventos cirúrgicos correspondentes à endometriose como à coluna vertebral, é possível traçar todos os procedimentos prévios. E ainda controlar a utilização de recursos e especialidades necessárias para cada caso, gerindo e agregando mais valor à experiência do paciente, dos profissionais e da operadora de saúde.

“Atrelada a isso está a importância de se avaliar a pertinência do cuidado, como um caminho efetivo para a entrega de valor ao sistema”, enfatiza a Superintendente. Para ela, gerir valor implica no procedimento originar-se da real necessidade de indicação, principalmente o cirúrgico, uma das disposições de maior impacto clínico e financeiro para o paciente.

A Superintendência também aposta em outras iniciativas, abrangendo a prescrição para marca-passo e cirurgias cardiovascular e bucomaxilofacial. A área tem planejado outras práticas para avaliar a pertinência do cuidado e atrelar a ela um novo modelo de remuneração para os casos cirúrgicos confirmados, por exemplo.

Atualmente 30 bundles estão em execução e novos produtos baseados em valor estão sendo desenhados, juntamente com a área de prática médica. “Temos cerca de 296 linhas de cuidado e estamos criando produtos baseados em valor para cada uma delas”.

A executiva acredita que as pessoas interessadas em gestão em saúde devem se preocupar com a base inicial, que consiste na definição do processo de cuidado dirigido ao paciente conforme a sua condição clínica. “É algo feito a muitas mãos e requer bastante dedicação e estudo”.

Ensino e qualificação profissional

Devido à importância do sistema de remuneração por valor, João Bittencourt conta que é fundamental que todos os cursos direcionados a formar gestores em saúde, tanto na Graduação quanto na especialização, devem investir no ensino desse tema.

Conforme ele, “o gestor precisa aprender a olhar para o setor de forma sistêmica, valorizando o planejamento e políticas de saúde e a eficiência operacional”. Na matriz curricular dos futuros administradores é fundamental conter estudos profundos de novas alternativas, que tragam soluções eficientes para os atuais e grandes desafios que a área apresenta.

Avançar na formação de profissionais de alto desempenho é a maneira mais eficaz de enfrentar o complexo sistema de saúde no Brasil, projetando o seu avanço de forma positiva. “O novo gestor precisa ter várias habilidades para lidar com o ambiente atual, gerindo também pessoas, projetos, inovação, entendendo de tecnologia, comunicação, leis de proteção de dados, além do conhecimento a respeito do funcionamento desse ecossistema e como aplicar nele as ferramentas de gestão”, diz o Coordenador.

De acordo com ele, há uma carência de profissionais com essas competências no mercado brasileiro. Por isso, é fundamental acelerar a formação de gestores com esse perfil. “Os novos modelos de remuneração com foco no valor e na qualidade do cuidado são algumas das soluções para mudar o panorama fragmentado que temos. A situação que vemos hoje no país, tanto no sistema privado como no público, é muito o reflexo do modelo de pagamento praticado”, completa a Dra. Dannielle.

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